O caos do amor

A vida tem dessas coisas. É uma teia de cenas, momentos, instantes. Por vezes, misturam-se, por vezes nem os notamos. Não dá tempo. Ironicamente. Mas, às vezes, dando um passo pra trás, está lá, bem à sua frente, tudo meio que interligado. Uma situação, que aparentemente não tem nada a ver com a outra, envolve pessoas que sequer se conhecem e tudo faz muito sentido.

Foi assim que começou. Entrei no consultório. Exame de rotina. A médica vai lá e pergunta sobre determinado sintoma - quando começou, o que senti, sem novidades. Até que aquela mulher, que encontro uma vez por ano, começa a desfiar um rosário de diagnósticos comportamentais, baseado na experiência dela - que nem julgo, nem conheço, nem faço ideia de onde vem esse embasamento. E, em meio ao que ouvia, pensava: "afinal, de onde ela tirou tudo isso?". Eu só respondera a três perguntas. E, juro, as respostas foram "desde março", "sim, alguns pequenos estresses em família", "não, só foi nessa região".

Saí de lá sem cerimônia. Com um riso amarelado, a médica teve a nítida sensação de que era a última vez que me veria. Fiquei repassando a consulta. Teria sido uma cobaia, dessas que se submetem a experimentos? Ok, a mulher estava num dia ruim. Não, não parecia estar. De onde ela tirou tais teorias? Assim, no meio do nada, sem pedir. Deve ter uma razão: uma tese maluca de doutorado, um mestrado, sei lá eu. Só sei que ouvi assim: "você escolheu ter um um filho autista".

Como o dia ainda começava e os dias, pelo menos pra mim, não têm muito de ócio (nada contra, aliás, de vez em quando.... é bom demais!), eu fui me embrenhando nos compromissos da agenda. Eu até brinco com isso, porque agenda, pra mim (dirão o horóscopo, a vida, enfim), é mais uma centopeia, viva, cheia de perninhas. Talvez o meu lado geminiana explique, porque sempre dou um jeito de encaixar o impossível. Aqueles 15 minutinhos de fôlego são um tempo e tanto para uma mente geminiana (ainda não sei qual a vantagem disso).

O dia passou e, à noite, comento com o marido a situação.  Uma coisa, eu concordei com ele. Ela entrou sem pedir licença. Mas, faltavam-me respostas. Mas, a criança, a mãe, a janta, tudo isso te espera. E você deixa pra lá.

Depois de alguns dias, vem o domingo. E o domingão incluiu a busca pelo par de tênis pro colégio. A verdade era clara. O garoto azul cresceu. Número do calçado: 34 (mesmo número que calça a avó, que coisa!). Sapatos com velcro são decididamente mais adequados. Não tem o que amarrar, dar voltas e laços. Mas, por alguma razão que deve ser muito coerente (sem sarcasmo), pares assim, com velcro e sem cadarços, vão até o número 33. "Nosso menino não é mais uma criança" - frase dita em tom trágico pelo pai. Rodamos umas três lojas e constatamos que o jeito era aceitar o novo mundo de cadarços. Aliás, o Google diz que há 43 formas de amarrar o tal do cadarço. Não consigo imaginar nem cinco!

Fomos contando ao futuro dono de pares novos de tênis cada passo, pois é assim que funciona o mundo azul - antecipação, detalhe, trazer a pessoa amada para o mundo presencial, a experiência.

Entramos numa loja. E o garotinho já se dirige à vendedora, com uma frase com sentido, sem exatamente fazer com que a vendedora entendesse o objetivo. Ele estava pedindo a ela para ver os sapatos. Rodou pela loja como um cliente exigente, ora com foco, ora distraído com os espelhos. Escolheu seu par preferido. "Vermelho e Azul?". "Isso, são do homem-aranha". E rodava pela loja, com os pares em vermelho e azul, dizendo que eram lindos.  Nas negociações com a dupla paterna, ele argumentava "é caro?".  Experimentou um outro modelo, disse que "estava apertado" - e estava!

De onde saiu aquela criança decidida, com uma comunicação em franca evolução? A vendedora sorria pela comissão, mas também pelo diálogo. E deu toda a atenção pra gente, com uma docilidade captada a todo instante. Foi uma cumplicidade total. Uma evolução inimaginável.

Aí, eu me lembrei da médica. E, mentalmente, sem que ninguém notasse, eu respondi a ela que"sim, eu escolhi esse filho".

Saímos do shopping. Vou ao socorro de uma amiga, cuja mãe está infelizmente se deparando com o caos na saúde pública. Há alguns dias, aguarda uma cirurgia. Em 10 minutos, eu vivencio a degradação humana. Pronto-socorro improvisado, falta de profissionais, insegurança, cada um trabalhando por três, cinco pessoas. Mas, ao mesmo tempo, eu vi um enfermeiro quebrando as regras e deixando dois pacientes entrarem sem que o hospital tivesse capacidade pra isso. Eu vi duas enfermeiras tomando a decisão de não aguardarem uma terceira para o procedimento de uma paciente demorar menos. Eu vi médicos querendo salvar vidas. Eu vi seguranças tentando fazer o melhor possível.

Eu vi o amor.

E, então, tudo ficou claro. É o amor que resolve escolher um filho com deficiência. É ele o responsável pela evolução profunda, reproduzida em coisas simples - como comprar um par de sapatos. É ele quem salva vidas. Que faz um ambiente caótico e infernal ser visto de outra forma.

Pra vendedora, pros enfermeiros, seguranças, uma gratidão incrível. E pra médica, todo o meu amor, torcendo para que ela tenha dias melhores e consiga aprender a se aprofundar mais. Porque ela só vai ganhar mais sorrisos, mais abraços, mais pacientes. Mais amor.

Foto do Brasil Acadêmico

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