Uma aula de reportagem em japonês

Ando com pilhas de livros para ler. Aproveitei os últimos dois feriados para praticamente devorar o livro que ganhei de presente da colega de profissão, Patrícia Kishimoto. Kishi me deu de presente Isolados em um Território em Guerra na América do Sul, assinado pelo bisavô dela, o também jornalista Koichi Kishimoto. Com o prefácio de Jorge J. Okubaro, jornalista e editorialista de O Estado de S. Paulo, o livro fala da perseguição sofrida pelos imigrantes japoneses no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial. Na década de 40, o livro alcançou mais de dois mil exemplares - um feito até para os dias de hoje. 

Koichi é cuidadoso na apuração e revela as mazelas sofridas pelos imigrantes por erros a partir  de percepções e interesses políticos. O livro é um belo aprofundamento da história da imigração japonesa, mostra aos leitores o autor como ele foi, de acordo com a época que viveu. Histórias dele e de outros japoneses e famílias, que não foram para os livros de História. Portanto, um livro essencial. Não só para quem gosta de História, mas do bom Jornalismo e, sobretudo, para entender muito do próprio comportamento dos japoneses e seus descendentes. A resiliência, o espírito de luta, a resposta pelo silêncio e a resignação. E o profundo respeito à própria cultura.

Para meu espanto (nem tanto), Koichi mostra diversos exemplos sobre como os japoneses eram interrogados, flagrantes terríveis da diferença entre o que era falado e o que era transcrito. E da presença constante de representantes das embaixadas dos Estados Unidos e da Inglaterra, acompanhando tais interrogatórios. Havia uma guerra e isso influenciou determinantemente as famílias nipônicas aqui no Brasil.

Os registros das esposas, que se tornaram chefes de família enquanto os maridos estavam presos por motivos questionáveis, são emocionantes. E como escondiam o que era precioso para eles, a exemplo de livros didáticos em japonês. Mulheres que sem saber quando os maridos voltariam, trabalhavam em pensões em troca de hospedagem e comida, ou em casas de família, ou tocavam o negócio como se nada houvesse ocorrido. 

Isso resgata aulas iniciais do bom jornalismo. E uma lição básica se chama apuração. Apurar é responder a perguntas básicas:

Quem?

O quê?

Quando?

Onde?

Como?

Por quê?

Para quem?

As respostas devem estar obrigatoriamente no texto jornalístico. Aliás, em qualquer conteúdo que se preze. Se não responder a uma das perguntas, fica algo sem pé nem cabeça. Koichi Kishimoto fez uma narrativa completa, uma grande reportagem com nomes, fatos e detalhes.  Relatou que ele e os companheiros de cela lá estavam por falarem japonês; por estarem em um culto religioso; por terem servido ao Exército japonês, mesmo que atualmente fossem meros agricultores. Um fio de tristeza invadiu a leitora aqui, pensando no atual, em que muitas pessoas estão presas no Brasil e nem cometeram crime algum; ou estão há anos esperando por um julgamento.

Havia uma divisão entre os que acreditavam no fim da guerra e os que não acreditavam, por conta da derrota do Japão. O não acreditar foi fruto de uma construção de um grupo que tinha interesse nisso. O que não surpreende em nada quando falamos de fake news atualmente. Isso fez com que a Koichi fosse creditado que ele era um nacionalista, que se recusava a acreditar na derrota de seu país. No entanto, lendo o livro, nada mais vemos do que alguém que lutou para contar a história completa, com a versão que foi abafada na época pelas autoridades.  Um ponto que me chamou a atenção e me levou de volta à cadeira da faculdade.

Em muitas aulas de Antropologia, Sociologia e Psicologia, eu e muitos colegas ouvimos sobre a questão pessoal e a imparcialidade jornalística. É inegável que o nosso olhar, o jeito pelo qual fomos criados, o País, a cultura, a família, a comunidade - tudo isso influencia o nosso jeito de pensar. No entanto, quando estamos diante de uma apuração, é importante ouvirmos todos os lados e narrar, pois a reflexão, o julgamento, é da audiência. Lembro sobre como, em reportagens em comunidades dominados pelo crime, nós, jornalistas, somos tão alvos quanto a polícia. Afinal, nós entramos nesses lugares atrás da polícia, literalmente. Entrevistamos, no máximo, os familiares dos bandidos. Quando muito. Raras são as entrevistas com criminosos. É complicadíssimo opinar, pois, muitas vezes, não há acesso a quem é preso. E, quem está foragido, além de não querer dar entrevistas, nos considera também inimigos. Mas, há de se refletir que percepções e questões econômicas pesam sobre a apuração jornalística atual.

Koichi amava o Brasil e lutou para ficar no País. Teve cassado o visto de permanência, mas lutou por muitos anos para ficar. Uma declaração de amor a um Brasil que insistia em expulsá-lo. Isolados em um Território em Guerra na América do Sul é um livro obrigatório para descendentes de japonês no Brasil, japoneses que vivem no Japão ou em outros países. É obrigatório para as cadeiras escolares e, sobretudo, para quem aprecia um bom Jornalismo. Uma belíssima aula de reportagem.

Recorte da Tribuna de Santos: expulsão de japoneses durante a Segunda Guerra

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