Entre a menina e a senhora

A vida é engraçada. Para não dizer lógica. Nós é que erroneamente a consideramos imprevisível. Os traços, as trajetórias, tudo delimitado. 

Você erra. E aí vem a oportunidade de consertar. Até a linha de chegada são centenas de quilômetros. Mas, vale à pena.


A recompensa veio logo de cara. Fui pelas mãos da menina. Ela me levou a seu quarto - que só não é usado para dormir - decorado com o seu nome. Mostra o que tem e o que mais gosta de ter - seus passatempos, que a divertem durante horas. 

Ela também me conta seus dilemas. A professora que é chata. O gosto pelas Ciências, pelo Português. A dificuldade com o espanhol. Tudo me encanta. Seu jeito sereno, seus olhos vivos, sua beleza infantil. Mal sabe que por suas mãos me chega um alimento sem precedentes, uma invasão da alma. A menina.

De uma ponta à outra. Agora, preparo-me para ver a senhora. A matriarca da família está doente, num leito da UTI. Sinto que vou me despedir dela.
Quase um século vivido. Muita luta, muitos acertos, muitos erros. Sobrevivência que vem desde a infância, quando perdera a mãe ainda criança e foi morar em orfanato. A relação de respeito com o pai, cercado de mulheres, das filhas aos amores. A paixão que lhe seria cortada, o casamento que viria na sequência, os filhos, os netos, os bisnetos. Muita história.

Estou entre a menina e a senhora. Sou a estaca do meio do caminho. Tenho um pouco da menina e já tenho histórias como a senhora. Não sei nada às vezes. Pareço uma menina. Sei muito, como uma senhora. Não sei mais nada, pelo Alzheimer, feito a senhora. Tenho minhas certezas de criança, que nem a menina. 

A alma ora brinca, ora está cheia de rugas. Mas, ela vive, entre mulheres, entre crianças e velhas, entre a vida e a morte.

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