O coração que mora ao lado
É tanta notícia, que por
vezes deixo a preguiça me vencer e não alimento o blog como gostaria. Tantas
coisas a opinar. Tantas avalanches de comentários. Muitos surreais, em minha
opinião.
Mas, com quem a preguiça
não tem vez são histórias. Pequenas, simples, singelas. Da observação das pessoas
em momentos considerados comuns. Muitas vezes, o comum é, na verdade, o segredo
do extraordinário. Surpreende de forma simples.
Ontem eu tomei o elevador.
Um pai zeloso carregando a filha. Toda empacotada para o dia frio, a menina abraçava o
pai com um carinho contagiante. E lá saiu o pai com a sua pequena no colo, sem
se importar em carregar nas costas uma mochila toda colorida e infantil.
Foi assim que, emocionada com a cena singela, ontem
eu tomei um táxi. Com pressa, já conformada por ter esquecido o guarda-chuva –
o que me custaria caro horas depois. Já fui logo me apegando ao hábito de
conferir mensagens no aparelho celular, quando o motorista começou a puxar papo.
Passávamos por determinada região, e ele me disse que não gostava daquele local, pois o fazia lembrar-se de uma tristeza que o acompanhava há mais de 40
anos.
Ali morou na juventude; trabalhava em uma transportadora, no centro da capital. Era
motorista de caminhão e percorria quinzenalmente milhares de quilômetros no eixo
São Paulo-Região Nordeste. Relatou para mim que, naquela época, ninguém gostava
de morar na região hoje infestada de gente, no Butantã, na Av. Francisco Morato. “Vinha
muita madeira do Mato Grosso do Sul e da Amazônia; o barulho era ensurdecedor”,
contou-me.
Foi nessa época que ele
conheceu uma jovem. Saíram, namoraram, em meio às longas viagens que fazia a
trabalho. Um dia, seus colegas de profissão o avisaram que uma moça grávida foi até o seu local de trabalho procurá-lo. Imediatamente,
ele foi até a residência da moça, mas não a encontrou. Chegou a mudar uma rota
de uma de suas viagens em busca da família.
Hoje, casado, com filhos e
netos, ele divide o segredo com os passageiros (e é em nome desse segredo, que aqui não revelarei mais detalhes sobre os personagens da vida real). Tem vergonha de contar à
família. E fica atormentado, sem saber se tem uma filha ou um filho, se está
bem.
Confesso que a história me
rendeu um despertar diferente na manhã de ontem. Faz a gente parar para pensar.
Não consigo avaliar o sofrimento diante de uma incerteza dessas. Lembrei-me do homem no elevador, tão certo de
sua paternidade. Imagem que confrontava com a do pobre motorista, atormentado e
sem saber quem seria seu filho ou sua filha.
O sofrimento mora ao lado.
Não temos ideia do que se passa com cada um. Fico a pensar por alguns minutos
na solidariedade, na compaixão, no respeito ao próximo. Minutos preciosos em
meio a horas que , muitas vezes, o que a gente presencia, lê e compartilha em
nada conversam com o caráter humanitário.
Enquanto a gente debate se
houve ou não estupro, se é para sentir mais ou menos dor sobre estupro coletivo
ou a morte de um adolescente - "esse, sim, jovem de bem" -, se somos de direita, de centro, de esquerda, de
extremos, se somos melhores do que o outro.
Enquanto a gente fica em estado de
choque com o caráter, ou melhor, com a
falta dele. Com o passar por cima das pessoas, com a imagem projetada por alguns, que esconde o medo e o
pânico da falta de tudo...
Enquanto isso, tem um pai atormentado. Tem um pai cheio de amor por uma filha. Tem
gente por aí. Temos nós mesmos.
Meus olhos estão cheios de lágrimas! Seu olhar pelo mundo é encantador!
ResponderExcluirVerdade, Andréa. Ninguém pode dimensionar a dor do outro. Não sabemos que força move cada um.
ResponderExcluirAdorei o relato. Gratidão pela reflexão. bj