O despertar

Outro dia eu saí do sério. Um manobrista ficou encarando o carro do táxi onde estava. Olhava para a placa como se fosse uma autoridade. O motivo: estávamos atrapalhando o fluxo de veículos. Não fazíamos isso propositalmente. Não havia lugar para estacionar. A partir daí, eu e o motorista, atônitos, ouvimos um monte de barbaridades. Até o absurdo de que não podíamos parar ali. 

O motorista começou a ficar exaltado, achando que de fato o manobrista faria algo para prejudicá-lo.  Eu comecei a ficar em silêncio, depois a sequência de injustiças fez efeito e, quando percebi, estava discutindo com o tal funcionário. Despejei tudo, ali, em plena luz do dia. Fui atrás dos meus direitos, manifestei a reclamação ao chefe dele. A cabeça estava com a sensação de missão cumprida, justiça feita.

Por que me alterei? Ora, porque ultrapassaram todos os limites. Porque às vezes cansa ceder o tempo todo. Em nome de todos que já foram destratados. Cansaço, acúmulo de situações de "espertos" dos mais variados níveis. 

Na mesma semana, meu marido presenciou uma cena digna da Pré-História. Um motorista de caminhão deu marretadas em um carro cujo dono se recusou a retirá-lo do local. O rapaz estava ciente de que atrapalhava o trânsito e causara, segundos antes, um tremendo acidente de trânsito. Meu marido acabou ajudando uma moça que, com a confusão, sofreu uma crise de pânico e não conseguia sair com o carro. Em plena sexta-feira de manhã em São Paulo, que é para piorar como se deve o dia de qualquer um. Quando ele me contou a história, terminou-a, dizendo: "a vida não anda valendo nada."





No domingo, nova semana começando. No supermercado, após um sábado de trabalho, aquele cansaço batendo. Mas a despensa quase vazia não pode esperar. Já no caixa,  ficamos compadecidos com uma senhora. Muito simples, com meias e sandálias velhas, um vestido desgastado, longo e florido, um casaco frágil para o frio e uma sacola que parecia carregar toda a sua vida. A senhora de cabelos curtos e grisalhos nos pediu para pagarmos um pacote de fraldas e uma lata de leite em pó. 

Embora a gente tivesse motivos para desconfiar, a solidariedade falou alto. Pagamos. Ela foi embora, nem vimos para qual direção. E quando estávamos nos preparando para ir embora, o mundo volta ao seu normal. Uma discussão. Desta vez, era entre uma senhora e um homem. A senhora havia deixado o carrinho na fila e fora buscar um item que faltara em sua lista. O homem não se fez de rogado. Na mais explícita demonstração de "perdeu o lugar", colocou o seu carrinho na frente. Foi o suficiente para presenciarmos mais um momento de fúria. 

Imediatamente eu reuni virtualmente os personagens dos últimos dias: o manobrista, o motorista de caminhão, a senhora humilde, a moça em pânico. Estamos estressados. Com tudo. Somos invadidos minuto a minuto por histórias trágicas e cheias de indignações. Por segundos, temos a chance de olhar para o próximo do jeito correto.

O manobrista me mostrou que eu tenho sangue nas veias, mas que não precisava dos segundos de fúria. Ainda vou agradecê-lo por isso. É tão simples que não precisa de explicação. Ele me mostrou um caminho de mudança.

Não é fácil buscar ser o 1%. Mas fica mais fácil quando se acredita que é o suficiente para mudar em 100%.

Não precisa nem de um porquê. Basta querer ser alguém melhor. O despertar é isso, é ir na contramão e gritar ao mundo que a vida ainda vale muito.




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